quarta-feira, 25 de julho de 2007

Jorge Mautner - Bilhete do Kaos (Parte III)




sábado, 21 de março de 1964

1 TUDO é novo no Brasil. Tudo. Até as esquerdas. Quero dizer: em expressão de massa. Exceções individuais sempre existiram. É como em tudo o mais: estamos atrasados muito tempo. Será às vezes ridículo de minha parte sonhar com um movimento de esquerda para o Brasil como o da Itália ou o da França? Acho que o Brasil tem condições para tanto. Um país cujo processo histórico se verifique pacificamente. Haverá lugar já para um alto nível cultural e existencial na revolução brasileira? Meus esforços de encontrar uma ideologia própria dentro do marxismo (na parte da condição humana e da arte) tem sido atacada pelo maior coro de histéricos sectários visto até hoje.

2 É COMO se eu fosse ovelha negra. Quisling e criminoso. Como são ignorantes estes Catões da província! Não sabem que prejudicam mais a revolução do que a auxiliam? Eu quero impedir que uma nova Idade Média stalinista ou fascista caia sobre o mundo. Sobre o Brasil. Lutarei dentro da esquerda pelos seus altos objetivos.

3 ÀS CARTAS de apoio que recebi, meu sincero e total agradecimento. Cartas de operários, estudantes e gente simplesmente. Cartas cheias de calor humano. Muito obrigado, pois elas me dão forças para lutar. Depois de ouvir os histéricos, é bom ouvir uma voz humana, que fale com o coração e não com a bílis ou com a frustração. E para você, leitora que está tão triste porque já não é mais passarinho, eis o que digo: a vida está em você. As fontes, os rios, o céu, os infernos e os opostos, estão todinhos em você. É só chegar ali no fundo sem medo. Sem medo de ninguém e de nenhuma voz a não ser a tua. E o céu e as asas do passarinho que você foi voltarão a você, porque elas jamais te abandonaram, foram esquecidas por você durante algum tempo. Mas o que é teu, será sempre teu. Isto ninguém te arrancará. E você é poeta, e os poetas têm crises necessárias de melancolia. Você bebe a vida da própria vida. Tomando um simples copo de água. Olhando um trem. Ao lutar pela coletividade apesar dos fanáticos que dizem que também lutam por ela mas o que querem na realidade é o sangue, a vingança, a projeção dos seus complexos. Você tem a vida. Você é a vida! E muito obrigado pelo apoio.

quarta-feira, 25 de março de 1964

1 ELE É FORTE, alto, lindo. Tem a pele bronzeada pelo sol do Guarujá. Músculos nascidos dos halteres, da natação, do pólo aquático. Tem um sobrenome pomposo do qual muito se orgulha. Sorri e acha a vida uma maravilha. Seu único pavor: os comunistas. Os comunistas são o único espectro da sua vida. E comunistas são as reformas para ele. Seu olhar puro, verde, ingênuo, se torna negro, violento, cheio de cólera, quando pensa nos "comunas". Jura que os "comunas" não hão de deflorar sua irmã, nem despedaçar os móveis de sua linda casa do Morumbi, e mostrou-me uma pistola alemã Luger que guarda no porta-luvas do seu carro-esporte Karmann-Ghia. Disse ainda que mais de vinte "comunas" morrerão na frente de sua linda mansão, abatidos por sua metralhadora especialmente adquirida para matar "comunas".

2 COMO é impressionante o número de empregadas domésticas que foram obrigadas por suas patroas a participar do desfile! Foram defender os privilégios das patroas.

3 O ESTUDANTE de direito virou-se para a mal-amada e falou: — "Pois é, nós defendemos o povo, as reformas, a senhora é rica, defende os privilé-gios". E a senhora gritou: —"Está enganado! Eu não sou rica não!" De fato, ela não era rica, era burra.

4 PARABÉNS à gloriosa classe dos estudantes, que sempre marcharão com a História e o povo! O Largo de São Francisco é o heróico Largo de São Francisco.

5 A IDADE Média pode cair sobre o mundo. Depende de nós. Está nas mãos do homem fazer as coisas. Senhor guarda-civil, meu amigo, irmão, homem do povo, você vai atirar no povo? Vamos mais uma vez lançar o apelo da luta pacífica, da marcha legal dentro da Constituição pela efetuação de um vasto e definitivo plebiscito popular. Pelo voto dos analfabetos. Pelas reformas realmente de base. Por todo o programa democrático!

6 SÃO PAULO tem um status quo social diferente das outras regiões do País. Uma frente nacional-burguesa aqui não funciona. Porque aqui a luta de classes é mais nítida. Sempre em nome da união total das forças progressistas e nacionais, democráticas e do centro, contra os golpes que a direita desesperada trama a todo vapor, de qualquer maneira. Saravá!

quinta-feira, 26 de março de 1964

1 QUANDO se descobre a contradição e se passa a aplicá-la, começamos a viver numa nova dimensão. Nosso ser dá um salto qualitativo tremendo e tornamo-nos amorais. Acima do bem e do mal nos leva a dialética. Tudo é negativo e positivo: estamos na contradição fundamental do homem: sua luta contra a natureza para efetuar a caminhada do progresso. Isto é agônico, dolorido. Mas as paixões continuam fluindo com a mesma intensidade. Como enfiar um sentido nisto tudo? Um motivo? Um porquê? Uma moral? Uma meta?

2 A CRISE do homem contemporâneo é a crise da vontade de poder. Para mim o homem será sempre romântico, no sentido denso do termo, sentido germânico.

3 ESTOU com André Breton em sua posição para com o marxismo. Revolução para que o homem se liberte em sua totalidade. Os fins jamais justificam os meios. Ievtushenko e qualquer poeta dirão isto. Poeta no duro. A não ser que antes de poeta ele seja um político trágico. Criticam-me alguns enjoados dizendo que repito coisas e que barateio minha mensagem escrita nos meus livros. Os enjoados estão errados. É preciso atingir todo mundo. É preciso que todo mundo saiba que a revolução, para ser verdadeiramente revolução, necessita da maior liberdade artística e existencial. Que o Kaos, ao lado de ser uma visão particular do mundo, é também a bandeira da liberdade artística dentro da esquerda. Irredutível serei nesta posição. Arte e ciência se equivalem. Nociva qualquer intervenção alheia, de dirigismo ou conceituação. É certo que estas coisas são sabidas mas é preciso repeti-las sempre e sempre, com dizia Sartre.

4 JÁ BASTA o fato de esta geração ainda ser vítima dos efeitos he-diondos do stalinismo. Ou a revolução é feita em estado de total pureza ou ela descambará para a sua mais terrível contradição. A revolução traz em si (como tudo) o seu contrário. E as questões são tão complexas que é difícil o julgamento. Eu nego o julgamento, em questões de arte, para a condição humana. Podemos julgar forças econômicas. Jamais o homem, porque todo trabalho é autêntico. Mesmo o traidor, o vigarista, o falso. Sei que não vão me entender e dizer que eu sou traidor, vigarista e falso.

sábado, 28 de março de 1964

1 BOSSA NOVA: durante muito tempo fui contra. Fui contra, simplesmente, porque era muito bonita, muito bonita demais para mim que não vivo em Ipanema, não tenho carro e sou um mitólogo trágico. Dentro de minha terminologia nietzcheana, bossa nova é muito apolínea, muito doce, muito rococó, muito boazinha, muito açúcar, muito keep-smiling, muito música de estudante sem vivência, muito letra de menino comportado, muito cristianismo, muito boa vontade. Enfim, bossa nova é o anti-eu e o que faço.

2 ACRESCENTE-SE o idealismo sectário político das letras participantes, reveladoras de um cristianismo otimista de um futuro florido. É o anti-eu, o anti-Dionísio. Tem mais: bossa nova é clássica, e eu procuro o afastamento. Ela é doce, mas de um romantismo que não machuca.

3 VOCÊS já viram a cara dos compositores e cantores bossa nova? Caras marcadas pelo sofrimento, rugas, expressão de máscara de tragédia grega. Aracy de Almeida, Noel Rosa, Ismael Silva. Por isto que as minhas músicas são todas dentro de uma linha de afastamento, deixam o ouvinte num vácuo e ele então tem que tomar posição, atitude. Inclusive todos os bossa nova são bondosíssimos. De uma ternura sem igual. Por outro lado são de um avanço tremendo. Eis o outro lado da contradição. Mas sempre carregarão dentro de si a marca de Ipanema, seu mar doce, sua vida amena e a ironia fácil do carioca.

4 A BOSSA NOVA, a meu ver, acabou. Transformou-se, melhor dizendo. Evoluiu para o afro e para o nordestino. Bebem agora em fontes folclóricas, uma verdadeira injeção vitalizante.

5 ANTES era a dissonância pela dissonância. Era o abstrato, o fácil sorrir ante o mar lindo de Ipanema. Era o conselho idiota: chega de saudade, conselho nascido de uma mentalidade de escoteiro ou reformista moral. Uma porcaria as letras sociais também, todas elvadas de uma falsidade hipócrita pequeno-burguesa. Um lirismo evangélico de fraternidade humana. O afro, a pesquisa folclórica, veio dar força telúrica, trágica, injeção de amargura e experiência de vida para esta superficialidade cor de rosa tão linda, tão apolínea que eu fico horas e horas ouvindo e achando o máximo, genial, bárbaro!

segunda-feira, 30 de março de 1964

1 GAROAVA. Chegou dentro do bar sofisticado e pagão um grupo de gente cheia de ginga. Era noite. Garoava e fazia frio. Entrou no bar frio uma turma quente. E quando olhei bem para quem entrava eu vi. E mal acreditei no que vi: entravam no bar gênios. Gênios da música brasileira. E foi de joelhos, em sinal de respeito, de adoração fanática, que eu ouvi com lágrimas nos olhos a voz de três criaturas tão puras, tão geniais que tudo o que de música existira antes deles ficou milênios para trás.

2 NELSON Cavaquinho, Zé Ketti, Cartola. Três nomes que eu pronuncio com vontade de chorar, de morrer, de alegria profunda por ter nascido numa terra chamada Brasil, que fez nascer estes três poetas maiores que Homero em sua simplicidade. Eles merecem uma eternidade de colunas, merecem tanta coisa que eu jamais poderei dar. Merecem tudo. Merecem as melhores gravadoras porque são a voz do povo em toda a sua malícia pura e beleza bachiana de melodia religiosa. Lembra tanto o canto-chão das cerimônias de Xangô!

3 SÃO os poetas mais puros e honestos que já conheci. Aquela voz rouca que carrega um tempo tão grande de emoção, sofrimento e alegria! "Diz que fui por aí levando um violão debaixo do braço". Meus senhores: estes três merecem estátua em praça pública. Merecem o que ninguém merece nessa terra. E a bossa nova nada fez de tão grande como agora, reconhecendo e trazendo à luz do dia estas jóias, estas maravilhas que nasceram nas noites do Rio de Janeiro, noites cheias de dor e alegria, de calor que o sol deixou de dia. Gente do morro. Eu rasgaria toda a minha obra por um samba daqueles! É difícil falar sobre a música, porque a música fala mais do que as palavras. É tanto o meu entusiasmo que, pela primeira vez, esta coluna tem continuação para eu poder falar amanhã sobre essa gente que é a gente do meu povo, que são os artistas do Brasil! Os mitólogos, os cantores, os poetas do povo, com sua ginga, sua malícia, sua pureza (com melodia bachiana aprendida sei lá onde!), seu calor que queima tudo na mensagem de amor mais formidável e revolucionária que já vi!
terça-feira, 31 de março de 1964

1 QUANDO os sambistas entraram no bar, os podres, os alienados, fizeram cara de enjôo. Eu ajoelhado, sabia o valor do presente que me era dado: ouvi a música, pela boca dos compositores! Os ratos, os coitados, os que fazem barulho porque nada mais sabem fazer, continuaram a falar enquanto Zé Ketti, Cartola e Nelson Cavaquinho cantavam. Mas a voz a força dos três era maior que a alienação, a falta de educação, cultura, brasilidade, dos cafajestes. A voz dos três lembrava o coro trágico de Dionísio. Era Brasil no verdadeiro samba social. Era a poesia emanando em toda a sua leveza e profundidade. Era o que de mais puro a massa produziu. Era a própria História gingando sob forma de samba!

2 VINÍCIUS de Morais disse: Socialismo, sim! Mas com samba! E eu acrescento: com samba de Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Cartola e Noel!

3 FIZERAM barulho os alienados. E naquele bar eu vi o que era Brasil, poesia e História e o que alienação e nojentice. Os que falavam bobagens intelectualizadas aos grunhidos e os que cantavam poesia de morro e do povo.

4 PEDI desculpas aos três e fiz ver que São Paulo não tinha culpa. São Paulo, o túmulo do samba. Aí os três e o Franco Paulino e eu saímos para a rua e garoava. Então Nelson Cavaquinho falou para mim: — "Será que se pode cantar em rua de São Paulo?" E caía o véu de garoa prateada. Eu disse: — "Pode, a rua é de todo mundo". E então na rua, naquela noite fria, enquanto garoava, mais um samba ecoou. Mais uma vez, a noite que era fria ficou quente. O amor em forma de samba do mais puro rolou das bocas dos três gênios e a garoa que era prateada e fria ficou (eu vi) dourada e quente.

5 OS TRÊS foram embora. De repente. Num carro para o Rio de Janeiro. São Paulo foi visitada por três anjos, três demônios inesquecíveis que fazem a maior música popular, a poesia mais sincera, singela e brasileira que eu já ouvi. De joelhos.

Um comentário:

Anônimo disse...

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