O texto a seguir é a transcrição da Conferência "Panorama de la philosophie française contemporaine", proferida por Alain Badiou na Biblioteca Nacional (Buenos Aires), em Junho de 2004. Aqui, em tradução nossa, foi dividido em três partes e servirá de apresentação à coleção "Anthologie Sonore de la pensée française par les philosophes du XXème siècle". Esperamos com isso contribuir com a assimilação dos conteúdos dos CD's, além, é claro, de propor uma discussão sobre a filosofia francesa contemporânea em suas duas vertentes (a vida e o conceito), no campo de batalha em torno do sujeito.
Tradução: Biblioteca Central em Atalaia
Panorama da filosofia francesa contemporânea
Alain Badiou
(Continua...)Alain Badiou
Eu pretendo apresentar a vocês algumas observações sobre a filosofia francesa, começando por um paradoxo: ela é a mais universal e também, ao mesmo tempo, a mais particular. É o que Hegel chama o universal concreto, a síntese daquilo que é absolutamente universal, que é para todos, e daquilo que, ao mesmo tempo, possui lugar e momento particulares. A filosofia é um bom exemplo: como vocês sabem, a filosofia é absolutamente universal, a filosofia se endereça a todos, sem exceção – mas existem na filosofia fortes particularidades nacionais e culturais. Existe aquilo que eu chamarei os momentos da filosofia, no espaço e no tempo. A filosofia é, então, uma ambição universal da razão e, ao mesmo tempo, ela se manifesta pelos momentos inteiramente singulares. Tomemos dois exemplos, dois momentos filosóficos particularmente intensos e conhecidos. Primeiramente, o momento da filosofia grega clássica, entre Parmênides e Aristóteles, entre os séculos V e III a.C., momento filosófico criador, fundador, excepcional e, finalmente, muito breve. Em seguida nós temos um outro exemplo, o momento do idealismo alemão, entre Kant e Hegel, com Fichte e Schelling, ainda um momento filosófico excepcional, entre o fim do século XVIII e começo do XIX, um momento intenso, criador e, ele também, no tempo, muito curto. Eu pretendo, então, sustentar uma tese histórica e nacional: houve ou há, de acordo com o ponto em que me situo, um momento filosófico francês na segunda metade do século XX, e eu gostaria de tentar apresentar-lhes esse momento filosófico, comparável – guardadas as devidas proporções – aos exemplos que lhes dei anteriormente, ao momento grego clássico e ao momento do idealismo alemão.
Peguemos essa segunda metade do século XX: O ser e o nada, obra fundamental de Sartre, aparece em 1943 e os últimos escritos de Deleuze, O que é a filosofia?, datam do começo dos anos 90. Entre 1943 e o final do século XX se desenvolve o momento filosófico francês; entre Sartre e Deleuze, nós podemos nomear Bachelard, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Althusser, Foucault, Derrida, Lacan e eu mesmo, talvez vejamos. Minha posição particular é, se houve um momento filosófico francês, dele ser talvez o último representante. É esse conjunto situado entre as obras fundamentais de Sartre e as últimas obras de Deleuze que eu chamo de filosofia francesa contemporânea e da qual irei falar. Ela constitui na minha opinião um momento filosófico novo, criador, singular e, ao mesmo tempo, universal. O problema é identificar esse conjunto: o que se passou na França, em filosofia, entre 1940 e o final do século? O que se passou em torno dessa dezena de nomes próprios que eu citei? O que é que nós chamamos existencialismo, estruturalismo e desconstrução? Existe uma unidade histórica e intelectual desse momento? E que unidade é essa?
Eis as questões que quero formular com vocês esta tarde. Eu o farei de quatro maneiras diferentes. A partir da questão da origem: de onde vem esse momento? Qual é o seu passado? Qual é o seu nascimento? Em seguida, enunciando as principais operações filosóficas próprias a esse momento de que falo. Depois, inserir uma pergunta fundamental, que é o laço de todos esses filósofos com a literatura e, de forma mais geral, o laço entre filosofia e literatura nessa seqüência. E em quarto lugar, eu falarei da discussão constante durante todo esse período entre a filosofia e a psicanálise. Questão da origem, questão das operações, questão do estilo e da literatura, questão da psicanálise, tais serão meus meios para tentar identificar essa filosofia francesa contemporânea.
Vamos então à primeira questão, a origem. Para pensar essa origem, é preciso remontar ao começo do século XX, onde se opera uma divisão fundamental da filosofia francesa: a constituição de duas correntes verdadeiramente diferentes. Dou alguns pontos de referência: em 1911, Bergson proferiu duas célebres conferências em Oxford, publicadas na coletânea que tem por título O pensamento e o movente, e, em 1912, na mesma época, portanto, apareceu o livro de Brunschvicg que tem por título As etapas da filosofia matemática. Essas duas intervenções entram em ação pouco antes da guerra de 1914. Ora, essas duas intervenções indicam a existência de duas orientações extremamente diferentes. No caso de Bergson, nós temos quilo que podemos chamar de uma filosofia da interioridade vital: a tese de uma identidade do ser e da mudança, uma filosofia da vida e do vir-a-ser. Essa orientação continuará durante todo o século, até – e incluindo – Deleuze. No livro de Brunschvicg, descobrimos uma filosofia do conceito apoiada sobre as matemáticas, a possibilidade de um tipo de formalismo filosófico, uma filosofia do pensamento ou do simbolismo, e essa orientação se manteve por todo o século, em particular com Lévi-Strauss, Althusser ou Lacan.
Nós temos, então, no começo do século, aquilo que chamarei de uma figura dividida e dialética da filosofia francesa. De um lado, uma filosofia da vida; de outro, uma filosofia do conceito. E esse problema entre vida e conceito será o problema central da filosofia francesa, do momento filosófico de que falo, a segunda metade do século XX.
Com uma discussão sobre a vida e o conceito, surge finalmente uma discussão sobre a questão do sujeito que organiza todo o período. Por quê? Porque um sujeito humano é, por sua vez, um corpo vivo e um criador de conceitos. O sujeito é a parte comum às duas orientações: ele é interrogado quanto a sua vida, sua vida subjetiva, sua vida animal, sua vida orgânica; e ele também é interrogado quanto ao seu pensamento, quanto a sua capacidade criadora, quanto a sua capacidade de abstração. A relação entre corpo e idéia, entre vida e conceito, vai organizar a formação da filosofia francesa e esse conflito está presente desde o começo do século, com Bergson de um lado e Brunschvicg do outro. Nós podemos, então, dizer que a filosofia francesa vai se constituir pouco a pouco em um tipo de campo de batalha em torno da questão do sujeito. Kant é o primeiro a definir a filosofia como um campo de batalha, onde nós somos os combatentes mais ou menos fatigados. A batalha central da filosofia na segunda metade do século será uma batalha em torno da questão do sujeito. Dou rapidamente alguns pontos de referência: Althusser definiu a história como um processo sem sujeito e o sujeito como uma categoria ideológica; Derrida, em sua interpretação de Heidegger, considera o sujeito como uma categoria da metafísica e Lacan, esse, criou um conceito de sujeito – para não mencionar o lugar central do sujeito em Sartre ou em Merleau-Ponty. Daí, uma primeira maneira de definir o momento filosófico francês será falar de batalha a propósito da noção de sujeito, pois é questão fundamental da relação entre vida e conceito, que, pos sua vez, nada é senão a interrogação fundamental sobre o destino do sujeito.
Observemos, sobre essa questão das origens, que podemos remontá-la muito além e dizer, no final das contas, que ela é uma herança de Descartes, que a filosofia francesa da segunda metade do século é uma imensa discussão sobre Descartes. Afinal, Descartes é o inventor filosófico da categoria de sujeito e o destino da filosofia francesa, sua divisão mesmo, é uma divisão da herança cartesiana. Descartes, por sua vez, é um teórico do corpo físico, do animal-máquina, e um teórico da reflexão pura. Ele se interessa então, num certo sentido, pela física das coisas e pela metafísica do sujeito. Nós encontramos textos sobre Descartes entre todos os grandes filósofos contemporâneos: Lacan mesmo lançou a palavra de ordem de um retorno a Descartes, existe um artigo memorável de Sartre sobre a liberdade em Descartes, há a tenaz hostilidade de Deleuze a Descartes, existe, em definitivo, tanto sobre Descartes quanto existem filósofos franceses na segunda metade do século XX, o que demonstra simplesmente que essa batalha filosófica é também, finalmente, em torno dos tributos e do significado de Descartes. As origens nos dão, então, uma primeira definição desse momento filosófico como batalha conceitual em torno da questão do sujeito.
Meu segundo tempo será o da identificação das operações intelectuais comuns a todos esses filósofos. Eu definirei quatro delas que, eu creio, ilustram bem o modo de fazer da filosofia e que são, de qualquer maneira, suas operações metódicas.
Peguemos essa segunda metade do século XX: O ser e o nada, obra fundamental de Sartre, aparece em 1943 e os últimos escritos de Deleuze, O que é a filosofia?, datam do começo dos anos 90. Entre 1943 e o final do século XX se desenvolve o momento filosófico francês; entre Sartre e Deleuze, nós podemos nomear Bachelard, Merleau-Ponty, Lévi-Strauss, Althusser, Foucault, Derrida, Lacan e eu mesmo, talvez vejamos. Minha posição particular é, se houve um momento filosófico francês, dele ser talvez o último representante. É esse conjunto situado entre as obras fundamentais de Sartre e as últimas obras de Deleuze que eu chamo de filosofia francesa contemporânea e da qual irei falar. Ela constitui na minha opinião um momento filosófico novo, criador, singular e, ao mesmo tempo, universal. O problema é identificar esse conjunto: o que se passou na França, em filosofia, entre 1940 e o final do século? O que se passou em torno dessa dezena de nomes próprios que eu citei? O que é que nós chamamos existencialismo, estruturalismo e desconstrução? Existe uma unidade histórica e intelectual desse momento? E que unidade é essa?
Eis as questões que quero formular com vocês esta tarde. Eu o farei de quatro maneiras diferentes. A partir da questão da origem: de onde vem esse momento? Qual é o seu passado? Qual é o seu nascimento? Em seguida, enunciando as principais operações filosóficas próprias a esse momento de que falo. Depois, inserir uma pergunta fundamental, que é o laço de todos esses filósofos com a literatura e, de forma mais geral, o laço entre filosofia e literatura nessa seqüência. E em quarto lugar, eu falarei da discussão constante durante todo esse período entre a filosofia e a psicanálise. Questão da origem, questão das operações, questão do estilo e da literatura, questão da psicanálise, tais serão meus meios para tentar identificar essa filosofia francesa contemporânea.
Vamos então à primeira questão, a origem. Para pensar essa origem, é preciso remontar ao começo do século XX, onde se opera uma divisão fundamental da filosofia francesa: a constituição de duas correntes verdadeiramente diferentes. Dou alguns pontos de referência: em 1911, Bergson proferiu duas célebres conferências em Oxford, publicadas na coletânea que tem por título O pensamento e o movente, e, em 1912, na mesma época, portanto, apareceu o livro de Brunschvicg que tem por título As etapas da filosofia matemática. Essas duas intervenções entram em ação pouco antes da guerra de 1914. Ora, essas duas intervenções indicam a existência de duas orientações extremamente diferentes. No caso de Bergson, nós temos quilo que podemos chamar de uma filosofia da interioridade vital: a tese de uma identidade do ser e da mudança, uma filosofia da vida e do vir-a-ser. Essa orientação continuará durante todo o século, até – e incluindo – Deleuze. No livro de Brunschvicg, descobrimos uma filosofia do conceito apoiada sobre as matemáticas, a possibilidade de um tipo de formalismo filosófico, uma filosofia do pensamento ou do simbolismo, e essa orientação se manteve por todo o século, em particular com Lévi-Strauss, Althusser ou Lacan.
Nós temos, então, no começo do século, aquilo que chamarei de uma figura dividida e dialética da filosofia francesa. De um lado, uma filosofia da vida; de outro, uma filosofia do conceito. E esse problema entre vida e conceito será o problema central da filosofia francesa, do momento filosófico de que falo, a segunda metade do século XX.
Com uma discussão sobre a vida e o conceito, surge finalmente uma discussão sobre a questão do sujeito que organiza todo o período. Por quê? Porque um sujeito humano é, por sua vez, um corpo vivo e um criador de conceitos. O sujeito é a parte comum às duas orientações: ele é interrogado quanto a sua vida, sua vida subjetiva, sua vida animal, sua vida orgânica; e ele também é interrogado quanto ao seu pensamento, quanto a sua capacidade criadora, quanto a sua capacidade de abstração. A relação entre corpo e idéia, entre vida e conceito, vai organizar a formação da filosofia francesa e esse conflito está presente desde o começo do século, com Bergson de um lado e Brunschvicg do outro. Nós podemos, então, dizer que a filosofia francesa vai se constituir pouco a pouco em um tipo de campo de batalha em torno da questão do sujeito. Kant é o primeiro a definir a filosofia como um campo de batalha, onde nós somos os combatentes mais ou menos fatigados. A batalha central da filosofia na segunda metade do século será uma batalha em torno da questão do sujeito. Dou rapidamente alguns pontos de referência: Althusser definiu a história como um processo sem sujeito e o sujeito como uma categoria ideológica; Derrida, em sua interpretação de Heidegger, considera o sujeito como uma categoria da metafísica e Lacan, esse, criou um conceito de sujeito – para não mencionar o lugar central do sujeito em Sartre ou em Merleau-Ponty. Daí, uma primeira maneira de definir o momento filosófico francês será falar de batalha a propósito da noção de sujeito, pois é questão fundamental da relação entre vida e conceito, que, pos sua vez, nada é senão a interrogação fundamental sobre o destino do sujeito.
Observemos, sobre essa questão das origens, que podemos remontá-la muito além e dizer, no final das contas, que ela é uma herança de Descartes, que a filosofia francesa da segunda metade do século é uma imensa discussão sobre Descartes. Afinal, Descartes é o inventor filosófico da categoria de sujeito e o destino da filosofia francesa, sua divisão mesmo, é uma divisão da herança cartesiana. Descartes, por sua vez, é um teórico do corpo físico, do animal-máquina, e um teórico da reflexão pura. Ele se interessa então, num certo sentido, pela física das coisas e pela metafísica do sujeito. Nós encontramos textos sobre Descartes entre todos os grandes filósofos contemporâneos: Lacan mesmo lançou a palavra de ordem de um retorno a Descartes, existe um artigo memorável de Sartre sobre a liberdade em Descartes, há a tenaz hostilidade de Deleuze a Descartes, existe, em definitivo, tanto sobre Descartes quanto existem filósofos franceses na segunda metade do século XX, o que demonstra simplesmente que essa batalha filosófica é também, finalmente, em torno dos tributos e do significado de Descartes. As origens nos dão, então, uma primeira definição desse momento filosófico como batalha conceitual em torno da questão do sujeito.
Meu segundo tempo será o da identificação das operações intelectuais comuns a todos esses filósofos. Eu definirei quatro delas que, eu creio, ilustram bem o modo de fazer da filosofia e que são, de qualquer maneira, suas operações metódicas.
Tradução: Biblioteca Central em Atalaia
"Anthologie sonore de la pensée française"
"Anthologie sonore de la pensée française par les philosophes du XXème siècle" é uma caixa com 6 CD's, contendo várias comunicações e palestras dos maiores nomes do pensamento francês do século passado. Georges Canguilhem, Gaston Bachelard, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Alexandre Koyré, Louis Althusser, Raymond Aron, Michel de Certeau, Jean-François Lyotard, Maurice Merleau-Ponty, Henri Bergson e Jean-Paul Sartre são alguns dos nomes que figuram nessa coleção que disponibilizamos aqui no "Biblioteca Central em Atalaia".
Comecemos com os dois primeiros discos:
Download: CD 01
Download: CD 02
3 comentários:
Vou esperar pelo final desse texto de Badiou, mas no momento está extremamente parecido com um artigo de Foucault, "A vida: a experiência e o conceito". Essa demarcação entre uma filosofia do conceito e uma filosofia do élan vital (que prefiro à "vitalista") já está muito bem delineada lá. Entretanto, essa relação com a herança cartesiana não é dada por Foucault, talvez seja essa a diferença entre ele e Alain Badiou.
Fiquei fascinado com essa coleção "Antologia sonora do pensamento francês"! Procurei na Internet e já vi a relação dos outros quatro CD's, estou muito ansioso pelas próxima atualização desse blog.
Parabéns pelo trabalho que estão fazendo!
Leandro, UFRJ.
Falar "Filosofia francesa" quando todos os problemas são alemães!
A seqüência do texto trata do papel desempenhado pelos filósofos alemães para a formação de uma "Filosofia francesa". A tese, evidente, não é a de anulação uma na outra. Esperamos poder criar esse debate aqui, ele é muito frutífero. Aliás, a título de curiosidade histórica sobre as filosofias francesa e alemã no Brasil, recomendamos a leitura do texto de João Ribeiro "A philosophia no Brasil", de 1917, que nós publicamos aqui no Biblioteca Central em Atalaia. Clique em "João Ribeiro" na lista de marcadores ao lado ou copie o link abaixo e cole no seu navegador:
http://bicen.blogspot.com/search/label/Jo%C3%A3o%20Ribeiro
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