segunda-feira, 25 de junho de 2007

Jorge Mautner: Bilhete do Kaos (Parte II)


segunda-feira, 9 de março de 1964

1 A ETERNA dúvida do homem é: ir ou não ir para a tempestade. Muita gente acha abrigo na casa da grande mãe. É melhor refugiar-se no seguro, do que enfrentar o abismo. Sei que vão dizer (os bitolados) que isto é idealismo negativista, ou qualquer nome idiota. Mas não me importa. Há muito que não me importo mais com os meus inimigos superficiais, que encontraram em alguma organização da teoria a paz para os seus complexos de frustração. Eu, pelo menos, não descanso, não me perdôo. A floresta é o grande perigo. É lá que estão as feras e o grande mel, a fonte rodeada de avencas e o sexo que é mais profundo e colorido quando a chuva cai serena e triste sobre a mata.

2 AS GOTAS de chuva são o choro de mil velhas morrendo de chorar, lá no céu. É a água que une a terra com o céu há milhares de anos e é a tristeza do mundo refletida. É o grande espasmo da natureza. O colossal infinito reino dos deuses.

3 É PRECISO ter a postura trágica do herói, é preciso saber renunciar um milhão de vezes e retomar a marcha um milhão de vezes. Mesmo que isto custe muitos inimigos, muitos mortos.

4 PARA onde nos conduzirá esta estrada? Vivemos dia a dia presos pelo terror. Terror de tudo, da guerra, da luta social. Agora o Partido Comunista decidiu esquecer a luta de classe por momentos. Lacerda retomou a luta de classe e é um ortodoxo. Reduziu tudo a termos de classe e usa o neo-capitalismo.

quinta-feira, 12 de março de 1964

1 COMO NÃO SOU colunista nem observador político, mas mitólogo e profeta, posso profetizar: estão tramando contra a vida de nosso presidente! A vida de João Goulart corre perigo como a de Getúlio. As mesmas forças de reação estão tentando assassinar o nosso presidente, assim como assassinaram o presidente Kennedy! O atentado está sendo preparado cuidadosamente! Peço a todos os brasileiros e democratas que rezem para que Deus proteja nosso presidente!

2 O HOMEM sempre necessita do mito. E, quando ele chega lá dentro do seu Eu profundo, nasce para um novo mito. Para uma nova conceituação do Universo em que todas as filosofias se encontram. Em que cristianismo verdadeiro (e consequentemente sempre de vanguarda) se encontra com o marxismo (não a bitolação sectária) e com a antologia de todas as meditações e formas de atingir a Iluminação. É aí que não existe nem bem nem mal. Mas só o amor que também destrói, mas destrói para construir, sempre construir destruindo, num ritmo eterno e terrível.

3 QUANDO ataco os sectários é bom que se diga o que entendo por sectário. Sectário, para mim, é o bitolado que se aferra a um dogma qualquer. Não importa qual seja. Há sectários em todos os partidos e credos religiosos. É a TODOS que combato. Quero o grande diálogo, a grande abertura, e hoje mais do que nunca este diálogo se faz necessário.

4 ATACO, portanto, os sectários de todo lugar, de Roma a Pequim, passando por São Paulo. Os que não querem o diálogo, os que têm preconceitos.

5 ESTAMOS num período lindo, enterrados o fascismo e o stalinismo, dois representantes da nova Idade Média; estamos num período de nova Renascença que se inicia timidamente, com a morte das burocracias, rumo à sociedade sem classes. Será que sou muito sonhador? Mas sou profeta e é preciso profetizar. Que bonito às vezes, em noites de lua e verão, caminhar pelas ruas cheias de árvores! Um bilhão de estrelas borbulham no céu e o calor que existe no espaço é denso. As casas iluminadas brilham, possuídas interiormente por um luz amarela e quente. Tudo é calor, vontade de tomar a divina água pura e gelada. De repente caí uma chuva e o rio corre pelas ruas.

sexta-feira, 13 de março de 1964

1 A DEMOCRACIA é a coisa mais formidável que existe. Só nela é que se goza da total disponibilidade de ir para onde se quiser. Só no sistema democrático conseguiremos fluir. A democracia com seus mitos, suas alucinações e defeitos, ainda é o melhor dos sistemas, mesmo porque em outro sistema me proibiriam de existir e escrever como escrevo. Minha obra é a disponibilidade total. Só obedeço às forças primordiais da paixão humana, dos elementos da natureza e do meu instinto.

2 E TUDO ISTO é trágico e terrível. Vocês já notaram como eu gosto de usar estas duas palavras: trágico e terrível. Terrível é bíblico, tem cheiro de milagre e coisa que surge. Trágico é pagão com todo o estoicismo inerente ao termo e à postura do homem pagão.

3 PERGUNTA freqüente: esta coluna o que é? É valida ou não? Perguntas estúpidas. Ela é o que é. É o fluir contraditório da vida.

4 FALO da democracia. E o fascínio de um ditador? Nós aqui tivemos um começo de ensaio de ditador e fascínio. E todo mundo caiu, até eu! Ele era místico, magnetizava. Quando falava era todo o povo que falava. Não preciso dizer nomes. Ainda está por aí. Gozado: em outros países o fim de um homem trágico é um fim trágico. Aqui não, é a renúncia. Em tudo se dá um jeitinho. Até a tragédia no Brasil é amenizada.
E paradoxo: Getúlio, que foi positivista, avesso a todo e qualquer romantismo, suicidou-se. Foi o suicídio mais genial da História, o mais produtivo. Com seu sangue Getúlio fez a política brasileira dar a reviravolta. De perseguido passou a mártir, e com isto todo o PTB. Até hoje. Foi um dos maiores homens da história brasileira. Trágico, pairava por cima dos messianismos momentâneos. Sorria, charuto na boca, ironia em tudo. Ironia, ironia. A lei era a lei.

segunda-feira, 16 de março de 1964

1 O ROCK’N’ROLL foi uma libertação sexual. Elvis Presley um símbolo de libertação de uma sociedade puritana como a dos Estados Unidos. James Dean — o herói trágico necessário em todos os mitos — fez o papel de Dionísio. O sacrificado. Aquele que voltará, ressuscitado. "James Dean não morreu!" Observadores superficiais e gazás moralistas gritaram que isto era a decadência, ou mais uma das provas da decadência. No entanto, o mundo emergirá justamente para esta era trágica e pagã, de uma nova síntese que vai sendo lentamente plasmada.

2 O ROCK era triste, heróico, nostálgico. Jamais um povo puritano poderia suportar por muito tempo a existência desta música dionisíaca porque esta o levaria para uma introspecção sombria e para o desespero. Logo então se criou o anti-rock, o anti-dionísio, que é o twist. E na superficialidade doce e rococó do twist perdeu-se toda a tragédia, fatalidade e amargura do rock perigoso. A libertação do orgasmo sexual traria grandes perigos para uma sociedade alienada como a dos Estados Unidos.

3 FOI PARA debelar este perigo que puseram fim à música instintiva do rock. É por isto que o movimento beatnik é altamente positivo e combativo, ridicularizado pelas fontes artificiais estadunidenses. Pergunto pelo Norman Mailer e os americanos me respondem com um sorriso de mofa: "É um escritor da moda".

4 SÓ POR CAUSA do seu marxismo-sexualista (que horroriza também os sectários do lado de cá). Outro dia um comuna sectário, quando lhe falei do grande Norman Mailer, respondeu com seus olhinhos de presépio brilhando: "O que esfaqueou a esposa?". Gagá moralista, entrave dos piores à revolução.

5 ENFIM, os imbecis do mundo se dão as mãos. É por isto que a sociedade capitalista decretou guerra aos instintos. A grande libertação do kaos. E o mundo socialista só entrará definitivamente no socialismo quando empreender esta libertação dos instintos e entrar na era do kaos. Até agora está ainda longe disto. Mas tenho fé. Já se notam sinais promissores. A vanguarda gloriosa do novo empreenderá a total libertação.

terça-feira, 17 de março de 1964

1 QUE é um disco voador? Tinha um psicólogo Jungiano que dizia que o disco era uma psicose coletiva em que todos projetavam a salvação. O homem moderno, angustiado, procurava criar um novo mito, já que os velhos haviam falhado. Disco voador para mim é de outro planeta. Que lindo, parece um pedaço de sol, uma lua fria, um pedaço de saudade e mar. Tudo isto é o disco voador trazendo em seu bojo um bilhão de gotas de chuva. O disco voador é a abertura para o desconhecido. Carl Jung. É a felicidade. A última esperança. Fora a reforma agrária.

2 TUDO o que se tem dito sobre o playboy é superficial. Claro que há uma grande confusão. Eu mesmo, quando me referi a playboy, não queria dizer playboy. Referia-me à juventude transviada, no que vai uma grande diferença. Imbecis confundiram os nomes e botaram tudo numa panela só. E o beatnik? E o hipster? Aparições heróicas na selva que é este novo mundo da técnica. E a natureza do homem sofre transformações fundamentais? Duvido. Ele pode — isto sim — emergir da era dos caos para a do kaos. Transportar toda sua angústia, toda sua mágoa, sua dor, seus instintos trágicos, para uma nova fase. De maior tragédia talvez, e de muito muito maior sensibilidade.

3 O MUNDO caminha para a planificação social. Os homens do povo, o proletariado e o campesinato deixam de ser ou são para se transformar, também, em uma nova "espécie" de classe média. E os antigos oligarcas e aristocratas descem de degrau e também se transformam numa nova espécie de classe média.

4 E OS CIENTISTAS? E os artistas? Ah! estes, num futuro remoto, comandarão tudo. Serão (o que já são) os mandarins, com toda a plenitude e força que a técnica colocará em suas mãos. No fim, só os artistas mandarão. É que a Humanidade andará sedenta de fantasias, sonhos, miragens, mitos (que não são mentiras nem alucinações, mas a representação poética da vida do homem), de um novo sentido religioso. E aí os artistas serão os novos sacerdotes. Apertando os botões das grandes máquinas, o mundo inteiro viverá na grande tragédia que todos escreverão. Porque todos serão artistas.

quarta-feira, 18 de março de 1964

1 A RÚSSIA é um enorme império com pés de barro, disse um dia alguém. E agora vamos analisar, com o meu método racional-poético do Kaos, estas coisas: muita gente fica chocada quando chamo de herói o revoltado jovem que usa blue-jeans. Repito: é um herói um rebelde pronto para o grande salto: da rebeldia para a revolução.

2 POR QUE muitos gênios da Humanidade são conservadores? Quem sabe até fascistas? É porque eles recolhem todo um legado de ensinamentos antigos, e como árvore grande o gênio vive no mistério. O gênio sabe que o mistério, a poesia, o acaso, persistem apesar de toda e qualquer lógica. E como durante algum tempo os sectários dominaram os movimentos progressistas, o mistério era reacionário. O misticismo da contra-revolução. Não sabem os imbecis que Julião das ligas camponesas adora ouvir Wagner e é místico? Que Einstein acreditava em Deus? Que o Kaos é o novo mistério, a nova religião atéia do homem materialista? Ó sectários de todos os credos e partidos: uni-vos em vossa infinita ignorância de frustrados e mesquinhos!

3 NO DIA em que o dogma morrer nascerá um novo mundo. Os símbolos modificam-se, transformam-se historicamente. Todos os símbolos. Durante algum tempo uma certa força humana era chamada de espírito. Esta força que o corpo humano irradia, através de várias manifestações: poesia, imanência, simpatia e antipatia, ódio, amor, intuição, premonição, contato, etc. Todas estas coisas que deixam de ser matéria e é sobre estas forças que recai a análise do Kaos.

4 O DESAJUSTADO é um herói porque se rebela contra um status quo. O drama todo, porém, é que ele não tem forças para dominar o status quo que o oprime. Então é uma revolta dolorosa, uma luta sem meta nem objetivo. Daí ele pode nascer para a revolução, que é a luta com consciência. E mais tarde, se não se transformar em sectariozinho, pode alcançar a terceira grandiosa etapa de ser marxista do Kaos. Isto é: revolucionário com uma supra-consciência poética e sensitiva da vida e da revolução.

5 REALMENTE genial Trótski em sua revolução permanente e em suas teorias sobre arte e estética. Viva, porém, o caminho pacífico! Viva, que há condições para uma esquerda com flores no Brasil.

sexta-feira, 20 de março de 1964

1 A FACULDADE de Direito estava de luto. Faixas negras na tarde cinza de São Paulo. Um jovem faz uma leitura. Fala nos desmandos da polícia. Correm boatos da morte de um repórter da "Manchete". E a gente fica imaginando o colega morto. Uma cólera nasce na gente. Um ódio. A tarde é cinza e o estudante fala com muita emoção, exagero e impulso.

2 O AUDITÓRIO que o ouve lá na frente da Faculdade é estranho. Investigadores, curiosos, lúmpen que não trabalham de tarde, comerciantes, espectadores, pequena-burguesia. Alguns trabalhadores. Ouço uma frase: "Eles querem é incendiar São Paulo".

3 UM LOUCO? Demente? O primarismo da propaganda de direita obceca. Entro na Faculdade e vejo um furo de bala de metralhadora num vidro esquecido. Esquecido porque depois da rajadas a polícia, para não deixar as marcas das balas, espatifou os vidros furados. Esqueceu de espatifar um pedaço de vidro. Lá, ficou a marca da bala. Uma rajada foi alta. Foi para não acertar ninguém. A outra foi baixa: na altura da cintura. Foi para matar.

4 À NOITE chegou o ministro da Justiça. O brucutu com suas luzes vermelhas, na voz do delegado do DOPS, mandou esvaziar o Largo. Depois a polícia baixou a borracha. Eu estava lá e corri para dentro da Faculdade. Estava fantasiado de repórter, com uma máquina sem filme da mão. Parecia um turista na verdade. Estava falando com o Marco Aurélio que, de barba e tudo, falava de poesia. Depois falei com vários estudantes. E estudante é tão otimista. Tão estudante.

5 O MINISTRO entrou fazendo o V da vitória de Churchill. Quando o nome João Goulart foi pronunciado, era como se fosse pronunciado o nome de Dionísio nos mistérios de Eleusis. Eu e todo mundo começamos a gritar: Jango, Jango, Jango. O líder que depois de sexta-feira, 13, alcançou dimensão histórica. Existem dois líderes: Jango e Lacerda. Sendo Brizola o monstro sagrado do povo brasileiro.

6 CONFRATERNIZEI com os estudantes. Meu pessimismo com o otimismo sadio deles. Depois foi aquela apoteose. Troquei algumas palavras com o deputado Cid Franco e seu filho Valter. Cid Franco com sua face de idealista profundo e sincero. A estudante Joana, com a linda estrela de Israel no peito, e a desconfiança para comigo. Alguns amigos. A voz de Abelardo Jurema. Aquele lugar e momento histórico. Porque tudo agora é mais histórico do que nunca! São imagens que ficarão para sempre, como antevisões da Coisa Nova, dentro de mim, poeta místico e pecador

(continua...)

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