sexta-feira, 11 de maio de 2007

Seção Cinza

Esta seção de nossa revista é dedicada à transcrição de textos e documentos pertinentes à História da Filosofia. Em sua estréia, apresenta o artigo "A philosophia no Brasil", de João Ribeiro.

Um dos primeiros grandes germanistas de nosso país, João Ribeiro, nascido em 24 de junho de 1860 na cidade de Laranjeiras-SE, ocupou a cadeira de Luiz Guimarães Junior na Academia Brasileira de Letras (não constando entre os fundadores por estar fora do Brasil à época), foi membro do Instituto Filológico Brasileiro e membro honorário do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. O artigo abaixo foi transcrito a partir da publicação na Revista do Brasil, v. 6, nº 22, em outubro de 1917. Nele, João Ribeiro expõe sua tese acerca da impossibilidade de uma Filosofia no Brasil, faz um balanço crítico das principais correntes filosóficas européias presentes no meio intelectual da época e conta como se deu a introdução da filosofia alemã em nosso país. Para o deleite do leitor, mantivemos a ortografia original.




"A philosophia no Brasil"



Não está no temperamento nem nas virtudes de nossa raça o culto da philosophia. Entre nós, um philosopho seria coisa anomala, sem antecedencias normaes, a classificar entre os productos teratologicos da especie. Não se comprehende, de facto, que surja um individuo, integralmente composto, fóra da tradição, do habitalismo ou da historia de nossas gentes. Portugal, nem o Brasil, jamais contribuiu para as investigações transcendentes. E, seja curteza de vista ou repugnancia natural, não ha raça mais refractaria á metaphysica que a nossa. O nosso idealismo não se alonga muito da terra, nem vae além dos mais proximos planetas; e, fóra da poesia condoreira e do gongorismo dos epithetos, ninguem se preocupa do infinito.

É louvavel essa moderação terrestre; parece-me. Entretanto, Portugal escapou de dar ao mundo um grande philosopho. Spinosa, chamado Baruch, era filho de um judeu portuguez e daquella tribu perseguida que achou asylo na Hollanda. Mas, nem era portuguez de nascimento, nem de educação materna e nem soffrera o contagio ou a affinidade das idéas e sentimentos lusitanos, inteiramente opostos ao espirito do famoso theologo do judaismo. Assim, a menos que se queira registrar as insulsas e tediosas dissertações do padre Theodoro de Almeida ou os dislates do Filosofo solitario do seculo XVIII e ainda as extravagancias de um certo Domingos Tarroso, nada inculca nos nossos antecedentes ethnicos a capacidade do espirito philosophico.

No Brasil, na época romantica, appareceu um philosopho de mediocre valor, o visconde de Araguaya, o autor dos Factos do Espirito humano, espiritualista, acre censor de Condillac. Esse era um poeta e foi, entre nós, o fundador da escola romantica que realmente appareceu, como o constitucionalismo, antes do movimento portuguez. Creio que ninguem lê, hoje, as suas locubrações psychologicas e metaphysicas.

Não temos, pois, propriamente nenhum philosopho. Não falo aqui, já se entende dos pensadores, isto é, dos espiritos philosophantes, criticos, sectarios ou discipulos de escolas varias, positivistas, spenceristas, materialistas e quejandos de outras matizes. Sem possuirmos um só philosopho, tinhamos, e temos ainda, aquem e além mar, o dilettante das idéas geraes, o pensador, conforme o expressa esta palavra estranha, excellentemente adoptada no uso comum. O pensador é, na literatura da nossa lingua, um tipo de alta categoria intellectual. E, sem nenhuma intenção de ridiculo, é o philosopho barato. Representa o maximum do esforço metaphysico.

Um dos focos d’essa philosophia de puro dilettantismo e, toda, de curiosidade das idéas geraes, foi o Recife sob a acção de Tobias Barreto. Quasi todos os rapazes desde aquelle tempo abeberam-se de preoccupações philosophicas: Silvio Romero, Fausto Cardoso, Orlando, Farias Brito, Graça Aranha e innumeros outros. O que ha nelles de massudo e pedantesco vem daquelle chafariz de pedras.

Grande conhecedor das coisas e das idéas allemans, Tobias, espirito de escól mas de duvidoso gosto, exerceu um influxo despotico e excessivo sobre a mocidade que lhe rendia um culto sem limites. Era o tempo do monismo philosophico de Hartmann e de Haeckel, e por egual do materialismo de Büchner, Vogt e Moleschott. Havia de tudo nessa miscellanea tedesca: Tobias chegou, tal era o seu prestigio, ao ponto de converter os valores e de transformar em divindade um philosopho de segunda ou terceira ordem: Ludwig Noiré. Este Noiré, expositor notavel do monismo, assumia ares de oraculo da philosophia coeva. Falava-se em Noiré como se fala em Homero ou Shakespeare.

Com taes elementos, um pouco dispersos e contradictorios, conseguiu Tobias influir um espirito novo na geração do tempo, e crear, ao norte, por assim dizer, uma literatura distincta da que se agitava no sul do paiz. Em geral o nortista, literato, tinha um grande desprezo pelos homens de letras da Côrte. Sabia-os atrazados, reaccionarios ou retrogrados, ignorantes, afrancezados e futeis. Escarneciam esses moços de Jouffroy, de Cousin e não tinham grande reverencia por Augusto Comte. Em todo o caso, Comte, e Renan eram dignos de alguma attenção. Mas, acima delles, reinavam Ludwig Noiré e Ernesto Haeckel! Foi, entre nós, uma especie de questão coimbrã. A confusão e o disparate não podiam ser maiores; todavia, o espirito novo, apezar de toleimas substaciaes, diffundiu-se rapidamente. Silvio Romero, vindo do norte, vibrou a clava demolidora.

Se este movimento não logrou uma renovação literaria, conseguiu todavia semear e colher alguns fructos. Nasceram novas tendencias na critica e nas idéas geraes, e ao mesmo tempo a attenção e a sympathia dos estudiosos pela cultura alleman.

D’esse nucleo philosophante do Recife, que lhe guardou e guarda ainda uma carinhosa tradição, sahiu o nosso Farias Brito, o unico philosopho profissional (se assim é possivel dizer) que possuimos. Farias Brito sahiu, a pospello, indignado do materialismo de seu tempo e da morte da metaphysica annunciada pelos seus contemporaneos. Consagrou a vida inteira ás cogitações transcendentes e pairou nas regiões desse absoluto que os rapazes haviam eliminado em imprudentes artigos de gazeta. Elle, pois, não quiz ser um dilettante, nem um curioso ou um mero pensador. Era um philosopho. Toda a sua actividade intellectual se coordena na metaphysica. Dizem-nol-o os seus livros, successivamente publicados: A Finalidade do mundo em tres alentados volumes, e depois O mundo interior, A Verdade como regra das ações, a Base physica do espírito – esforço colossal disperso em milhares de paginas.

Coisa insolita! Este era um philosopho, pela abundancia, pela prolixidade ou pela vastidão e até mesmo pela caligem de estylo, por vezes impenetravel. Frequentemente é dificil dizer o que querem aquelas paginas que necessita um meneio constante, uma perda de tempo e uma attenção que não é propria da mobilidade dos nossos dias. Não é coisa facil, alcançar uma intelligencia rasoavel de suas doutrinas. Percebe-se que elle era um espiritualista descrente ou indeciso que se encaminhou para o dominio da Fé. Os seus expositores, são demasiado amigos e, conseguintemente, panegyristas parciaes. A simplicidade e doçura de caracter do philosopho impediram nos seus criticos a verificação do valor exacto de sua obra.

Esse valor, se estamos com a verdade, é nenhum. Farias Brito é um philosopho atrazado, incongruente, e não deixará um só discipulo. Querendo reviver a metaphysica pelo naturalismo, e por um methodo obsoleto, a ratione, cahiu, afinal, em contradição e antinomias com a sua propria obra inicial, quando, tarde e mal, conheceu (no Rio, suponho), os trabalhos de Bergson e W. James. Parece que não conheceu os de Schiller (falo do philosopho inglez do Humanismo) e estou certo que ignorava, na mesma ordem de idéas, os de Simmel, Hertz, Mack, Astwald, que vieram depois de Frederico Nietzsche na Allemanha.

A verdade é que os systemas e as doutrinas novas colheram-n’o de surpresa, e comprometteram a solidez do edificio que ia architectando. A parte mais fixa de sua personalidade era o seu temperamento profundamente religioso, máo grado o terremoto de idéas que o assoberbavam. Elle queria, pelo menos, salvar a Fé, como uma reliquia digna de todo o sacrificio na terrivel eversão de seus ideaes. O mais não tem quase importancia. As suas desegualdades monstruosas não o descoroçôam. Como quer que seja, algumas affirmativas denunciam preocupações infantis e quasi simplorias do seu espirito: a de saber-se, por exemplo, se ha uma religião verdadeira, a de imaginar a necessidade futura de fundir o christianismo e o budhismo com o intuito de formar uma religião nova.

Em certa occasião, esforça-se o novo philosopho por dar um complemento á evolução organica, segundo Darwin. É preciso completar a evolução dos seres pela finalidade, sem se lembrar que a selecção, sendo escolha, é, por si mesma, teleologica. Mais tarde, num dos seus ultimos trabalhos, sabemos que a “finalidade do mundo é o conhecimento. A evolução universal, diz elle, é um esforço permanente do cosmos para adquirir o conhecimento de si mesmo”. Desta arte, a evolução ou progresso dos seres não tem finalidade, e, logo depois, tem a finalidade do conhecimento de si mesmos.

Essas contradições, cito-as apenas para mostrar o influxo do bergsonismo e do pragmatismo sobre seu naturalismo primitivo. Não ha coherencia nenhuma entre as suas primeiras e ultimas cogitações, onde se enxerga o esforço inutil de mostrar a unidade de sua philosophia. Sua obra, em resumo, é uma critica sucessiva de idéas pessoaes, sem systema razoavel e sem unidade visivel a não ser a da sua personalidade, movel e iquieta. Tudo nella se reflete, doutrinas novas e velhas, verdades, absurdos e extravagancias, o dogma da queda do homem, a philosophia de A (sic), Sergipe, o mysticismo, o theosophismo e talvez o espiritismo. – João RibeiroO Imparcial, Rio de Janeiro.


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2 comentários:

Unknown disse...

Excelente texto! Assustador pensar nas teratologias que se estudavam em terras brazucas naqueles tempos de ecletismo indigesto; e impressionante como as três primeiras frases do artigo soam atuais. Papagaios me mordam!

Biblioteca Central disse...

Acho igualmente assustador o total silêncio da maioria dos manuais de Filosofia sobre a importância dos intelectuais sergipanos da Escola de Recife. João Ribeiro, feroz crítico de Tobias Barreto e seus seguidores, não nega o valor de seus trabalhos. A Filosofia Alemã entrou no Brasil pelo Nordeste e o próprio João Ribeiro teve grande importância em sua divulgação, quando trabalhava com os modelos alemães de interpretação cultural muito antes do Sul do país tomar conhecimento dessa alternativa.